O óbvio também precisa ser dito — e ouvido.
Em um mundo de relações líquidas, expressar suas vontades é um ato de coragem, mas saber ouvir é o que faz a diferença.
A ideia de “liquidez” nas relações, tão explorada por Zygmunt Bauman em seus livros, nunca pareceu tão real quanto agora, quando basta deslizar a tela para ver vídeos que tentam ensinar como devemos — ou não devemos — nos relacionar. Em meio à enxurrada de conteúdos sobre relacionamentos, conselhos são dados como verdades absolutas: o que é tóxico e o que não é, como um homem deve agir, como uma mulher deve se comportar, o que é aceitável e o que merece ser cancelado. Quase sempre, a tentativa é a de formatar um relacionamento ideal que, na prática, não existe.
Mas isso tudo não é novidade, li muitas revistas teen na minha pré-adolescência para saber que esse discurso sempre existiu, com colunas inteiras dedicadas a ensinar nós, mulheres, a agirmos da forma ideal para nos tornarmos atraentes aos olhos masculinos.
Listas eram feitas com os comportamentos ideais para chamar a atenção: não responder no mesmo minuto que ele enviar mensagem; não parecer que ele é o único garoto com quem você conversa (homens gostam de competir); entre outras indicações.
O problema atual é que isso era feito quando eu tinha meus 12 anos. Hoje, tenho 25, e percebo como esses joguinhos só prejudicam relações que poderiam ser muito mais duradouras e verdadeiras se as duas partes fossem mais maduras e parassem de acreditar como verdade absoluta tudo aquilo que veem na internet.
No fim, das revistas ao tiktok, o que mudou foi o canal de distribuição desses conteúdos. Além dos discursos se tornarem mais perigosos conforme a ascensão do conservadorismo. Antes, as dicas eram “não deixe ele achar que é o único a falar com você” hoje, eles dizem “não tenha muitos homens seguindo você no instagram, isso faz você parecer uma vadia”.
De um lado, o machismo veste a pele de vovozinha, serve um café quente e fala mansamente, dizendo que defende as mulheres. Do outro, mulheres se perdem em debates que reforçam o machismo enraizado na nossa sociedade, discutindo quem deve pagar a conta e sonhando em se tornar troféu, sacrificando sua autonomia para ganhar mais horas de academia. A treta sobre quem paga a conta é uma das mais fúteis e ridículas dessa história.
E vocês sabem o que fica de fora de tudo isso? Aquilo que realmente importa: a complexidade das relações humanas.
A verdade, por exemplo, é que um homem querer dividir a conta com você não é, por si só, um comportamento tóxico — tampouco uma red flag. Red flag seria se ele fingisse esquecer a carteira, esperando que você pague sozinha. A divisão de contas deveria ser uma prática saudável em um relacionamento, quando ambos estão dispostos a colaborar financeiramente um com o outro para manter uma relação em um mundo capitalista onde namorar é caro. E, mesmo que ainda não exista um relacionamento, a intenção de dividir pode ser decisiva para entender a maturidade de cada pessoa dentro da situação.
Mas relacionamentos não são só sobre pagar uma conta ou não. Sobre alugar uma cabana na serra e receber sua namorada com a cama cheia de pétalas de rosa, ou sobre não trair.
Relacionamentos são camadas complexas de dois indivíduos completamente diferentes que decidem, em algum momento, compartilhar a vida. E, para compartilhar a vida, é preciso ceder em muitos momentos e enxergar o outro com todas as suas peculiaridades.
Ao abrirmos o TikTok e nos depararmos com homens e mulheres discursando sobre relacionamentos, é preciso refletir sobre o que estamos absorvendo como verdade para nós e para nossas relações. Afinal, as pessoas têm formas diferentes de sentir e demonstrar afeto. Usar como referência alguém da internet é injusto com você e com quem você se relaciona.
Criadores de conteúdo pregam que as mulheres não devem pedir para que o homem faça o que ela quer – ele deve perceber por conta própria e, como consequência disso, frequentemente vejo vídeos com conselhos sobre relacionamentos cheios de comentários do tipo: 'Pra mim não, algoritmo, pra ele.'” Esse discurso só reforça o que ouvimos a vida inteira: é preciso nos contentarmos com o mínimo.
Desde cedo somos ensinadas a praticar joguinhos, a não falar diretamente o que queremos, a esperar a boa vontade do homem de agir, mesmo que isso nos decepcione constantemente.
E eu me pergunto: custa clicar no aviãozinho e enviar pra pessoa?
Nós precisamos entender que nem Edward Cullen conseguia ler os pensamentos da Bella — e precisava perguntar a ela sempre aquilo que estava sentindo, para que ele agisse de maneira adequada. Então por que nós, meros mortais fora da literatura, temos tanto problema em verbalizar aquilo que queremos?
Não tem problema nenhum pedir. Principalmente quando entendemos que pessoas pensam de forma diferente. Pessoas sentem de formas diferentes.
As famosas linguagens do amor tiveram o seu momento de boom na internet justamente pra mostrar isso.
Algumas de nós precisam ser amadas em voz alta: com demonstrações públicas de afeto, com cartas de amor, com buquês de flores e fotos no Instagram. Outras sentem pavor só de imaginar algo do tipo, preferem aproveitar um jantar romântico em casa, não publicar nenhuma foto (porque aquilo que ninguém sabe, ninguém estraga); que demonstram amor assistindo a um filme que ela mesma detesta, mas sabe que a outra pessoa gosta.
E, às vezes, essas necessidades mudam durante o relacionamento.
É possível começar um namoro detestando a exposição, mas depois querer ver fotos suas no perfil do seu namorado. Também é possível começar um relacionamento amando a exposição, as diversas fotos, os passeios constantes — e depois optar por algo mais reservado.
E isso é natural.
Mas essas necessidades precisam ser comunicadas, porque a pessoa que está do outro lado não vai perceber que as suas vontades mudaram da noite para o dia – e isso não quer dizer que falta amor.
Afinal, o óbvio também precisa ser dito.
O problema começa quando o homem acredita que, só por não trair ou fazer gaslighting, já está fazendo o suficiente. Porque um relacionamento precisa de manutenção como todas as outras áreas da vida. Me perdoe a analogia, mas é como trocar o óleo de um carro antes de fazer uma longa viagem. Quando percebemos que algo está errado, fazemos o reparo e seguimos em frente.
É preciso entender que as relações são cíclicas, porque as pessoas também são. Em um momento, algo está fazendo sentido. No outro, não mais. E isso não significa que está na hora de terminar tudo e desistir do amor que ainda existe – mas que é necessário haver conversas difíceis para reparar aquilo que pode estar desajustado e, então, tudo voltará a fazer sentido novamente.
Tem um podcast que eu gosto muito e que tem dois episódios especiais: um com a Thaís Araújo e outro com o Lázaro Ramos. Em ambos, eles compartilham a história do relacionamento deles — sobre como chegaram a terminar porque acharam que o namoro tinha ficado chato, e sobre como decidiram voltar quando entenderam que, no fundo, ainda gostavam um do outro e queriam fazer dar certo.
Eles falam com muita honestidade e naturalidade sobre momentos em que um estava mais apaixonado do que o outro, ou quando simplesmente achavam o parceiro um porre. E deixam claro que, em uma relação saudável, isso é natural. E digo relação saudável porque mostra que não existe a obsessão e a idealização da pessoa perfeita. Tudo que existe é o amor e a vontade de fazer dar certo.
A nossa geração é tão acostumada com a dopamina das redes sociais, ao imediatismo dos likes e dos matches, que desaprendeu a sustentar o tédio, a monotonia, a fase difícil. A gente não para pra perguntar por que as coisas ficaram chatas. A gente só desiste, como se fosse a troca de um vídeo para o outro. De uma rede social para a outra. E nessa desistência constante, as relações não se aprofundam, e a gente também não.
Se relacionar romanticamente não é sobre ter alguém pra transar quando tiver vontade, sem passar pelas burocracias da vida de solteira. Se relacionar romanticamente é entender que concessões vão precisar ser feitas em muitos momentos. É saber ouvir que se a pessoa que você gosta precisa ganhar presentes esporadicamente para se sentir amada, então você vai dar o seu máximo para agradá-la, nem que seja comprando um chocolatinho – porque não é sobre presente, é sobre uma manifestação de amor e cuidado, é sobre o “vi e lembrei de você, quis te trazer porque achei que te faria feliz”.
“Sem humildade e coragem não há amor. Essas duas qualidades são exigidas, em escalas enormes e contínuas, quando se ingressa numa terra inexplorada e não mapeada. E é a esse território que o amor conduz ao se instalar entre dois ou mais seres humanos.” — Zygmunt Bauman
Acredito que, neste trecho, podemos utilizar a frase de Bauman para dizer que é preciso ter coragem para se relacionar com alguém porque, para esse relacionamento ser verdadeiro, muitas conversas difíceis precisarão ser tidas. Daquelas que, muitas vezes, você chora a cada palavra, mas que nunca mais sairá o mesmo, porque com a humildade de escutar e entender você aprende a reconhecer a pessoa que está com você.
O óbvio precisa ser dito para que haja a manutenção de um relacionamento. Mas ele definitivamente não precisa ser dito o tempo inteiro, porque existe um desgaste emocional em se colocar na posição de pedinte, de “eu tenho que falar o tempo inteiro aquilo que me faz feliz” porque a outra pessoa se recusa a mudar.
E quando existe a recusa em fazer algo para deixar a pessoa que você ama feliz, existe um grande sinal de alerta sobre quais são as prioridades nessa relação.
Às vezes o ego fala mais alto — e ego é uma coisa que não deve existir na mesma frase que o amor.
O óbvio precisa ser dito para manter a relação saudável, mas quando ele não é escutado, é preciso rever as prioridade e, talvez, entender o momento de partir para o próximo conteúdo.
✨ Este texto possui uma lista de indicações e referências ✨
— e é para você seguir refletindo.
Mulheres que precisam ser amadas em voz alta
Encontrei este vídeo aleatoriamente na minha For You hoje e me identifiquei com ela. Enquanto escrevia este texto, lembrei da expressão e senti a necessidade de citar.Ele não está tão a fim de você
O filme conta a história de uma mulher que está desesperada para fazer os homens gostarem dela e passa a seguir os conselhos de um mulherengo que ensina ela a fazer joguinhos — mas eles acabam se apaixonando. Lembrei desse filme enquanto lia a indicação abaixo:Adestramento feminino virou conteúdo
O texto da Enna fala muito sobre esses conteúdos digitais que estão servindo como forma de “adestramento” das mulheres, vale a leitura.The Great War
A música da Taylor Swift retrata dois personagens que têm um problema na relação e passam por momentos dificeis para tentar resolvê-lo, mas sobrevivem ao período difícil.
Podcast Thaís Araújo e Lázaro Ramos