Quando foi que o diálogo se tornou monólogo?
Como a pressa, o ego e os algoritmos transformaram as conversas em um caso de extinção.
Assim como no meu último texto, é impossível viver a atualidade e não voltar à ideia de uma modernidade líquida — conceito criado pelo filósofo Zygmunt Bauman para falar de um tempo que escorre pelas mãos, que muda de forma antes mesmo de ser compreendido. Mas, para pensar nas conversas de hoje, talvez seja preciso rebobinar a fita e lembrar de quando as redes sociais ainda faziam parte da nossa vida offline, sob um céu cheio de nuvens e vento com cheiro de flores de laranjeira, encontros no portão, olho no olho e nossas próprias expressões faciais para sinalizar nossas reações.
Porque redes sociais, pra quem não sabe, é exatamente isso: uma rede de pessoas que se conectam entre si, independente do meio e da tecnologia que as cerca.
E, desde os primórdios, o diálogo foi nossa principal forma de sobreviver no mundo. Nos comunicávamos por gestos, por símbolos, por palavras. O corpo fala, tem até um livro com esse nome, explicando como nossa forma de mexer nossos membros comunica alguma coisa.
A cultura brasileira, inclusive, carrega um ditado que resume bem isso: “quando um burro fala, o outro abaixa as orelhas”. Ou seja, primeiro você ouve, depois você responde. Porque a conversa só acontece quando alguém está disposto a escutar. E quantas vezes a gente está ouvindo já pensando no que vai falar? Às vezes a outra pessoa nem terminou seu discurso ainda, mas já estamos com a resposta pronta, na ponta da língua.
Vivemos neste mundo acelerado onde a disposição de ouvir o outro se perdeu. Mas sopramos a fita, e continuamos rebobinando a nossa história.
Primeiro, surgiram os celulares, que chegaram sorrateiros, como quem não quer nada, aproximando quem estava longe e transformando longas distâncias em apenas alguns toques. Com limite de tempo, claro, mas ainda havia o desejo de conexão, as conversas que se desenvolviam. A preocupação no seu sentido mais afetuoso, por querer saber se a outra pessoa estava realmente bem, como estava vivendo, o que estava fazendo. Ainda havia afeto. Ainda havia tempo.
Depois, vieram os computadores. O mundo se ampliou. As conversas ganharam novas formas: mensagens de texto, publicações em blogs, comunidades que agrupavam um conjunto de pessoas que partilhavam dos mesmos gostos (eu odeio acordar cedo – e a foto do Garfield). Publicar uma foto era sinônimo de registrar momentos e compartilhá-los com nossos amigos mais íntimos. Algumas publicações se tornavam depoimentos fixos em seus perfis, registrando nosso carinho. Chamadas de vídeo aproximavam aqueles que estavam mais longe e nem sabiam mais se reconhecer fisicamente. Apesar de digital, ainda existia intimidade.
Amizades eram formadas através de avatares pixelados.
Mas, de repente, como toda existência líquida, tudo mudou.
Com a pandemia da COVID-19, a produção de conteúdo deixou de ser íntima, ou um mero passatempo, e virou uma forma de sustento. As lives, a fotografia mobile e a produção de vídeos e textos salvaram muitos negócios – até os mais consolidados. E, para tentar fugir da crise, acabamos imersos nesse universo totalmente digitalizado, com marcas surgindo a cada momento e o mundo consumindo as mesmas coisas e vivendo as mesmas coisas ao mesmo tempo.
A crise inesperada tornou comum aquilo que lentamente já estava acontecendo. E, com uma nova mídia digital surgindo, adolescentes comuns receberam tanta repercussão que se tornaram ricos, melhorando suas vidas e as de suas famílias, simplesmente por dançarem. Enquanto professores se adaptavam para manter o cronograma escolar em dia.
O imenso paralelo dos círculos íntimos vividos no digital e os círculos cada vez mais abrangentes criados por uma aflição global irrompeu em um ciclo extremamente vicioso em que consumimos tudo em todo lugar e ao mesmo tempo.
O digital se tornou um vício silencioso, construído à base de dopamina fácil, respostas rápidas e atenção fragmentada. Por dois anos, levamos nossos celulares ao banheiro com a câmera desligada para fazer nossas necessidades sem perder as aulas. Por dois anos, fizemos exercícios físicos enquanto conversávamos com nossos amigos por mensagem de texto. Por dois anos, assistimos aula em uma tela de computador enquanto, no celular, tentávamos replicar uma dancinha nova.
E, hoje, escutamos nossos amigos no fundo, enquanto vemos vídeos no mudo. Respondemos quem está na nossa frente, falando com a gente, enquanto rolamos vários posts. Nossas conversas se transformaram em comentários rasos. Enviamos emojis por preguiça de digitar uma risada – eu sei que você já fez isso! E soltamos um arzinho pelo nariz só pra demonstrar que estamos ouvindo quando, na verdade, já nos desligamos há muito tempo.
As longas conversas viraram recados curtos. Os desabafos viraram áudios acelerados em 2x seguidos da figurinha “nossa, um podcast!”. As escutas viraram presenças ausentes. E quando alguém se propõe a escrever um pouco mais, a leitura dinâmica se faz presente: lemos palavras chaves, achamos que entendemos o suficiente e mandamos uma resposta de uma linha.
Eu também vivo isso na pele. Sempre fui do tipo de pessoa que olhava para formigas e criava uma tese existencial. Meus diálogos eram intensos, repletos de reflexão social e cultural. Hoje, minhas conversas se resumem a poucas mensagens por dia, muitas vezes carregadas de figurinhas, emojis e frases soltas que nem sempre dizem o que de fato eu sei que deveria dizer, mas que não tenho tempo para discorrer.
Já não há mais disposição para aqueles longos conselhos que dávamos às nossas amigas quando elas se apaixonavam por um garoto que viram uma vez no ônibus. Hoje, mal sabemos com quem elas deram match no Tinder. Os relatos sinceros e introspectivos, daqueles que a gente mergulha no que o outro está sentindo, se transformaram em um “ah, amiga, não rolou”.
E aí a gente começa a dizer que está tudo bem, que são amizades de baixa manutenção, que a vida está corrida, que a gente se ama mesmo sem se falar.
Mas será que é isso mesmo?
Eu já dei entrevistas, já escrevi textos, já fui uma grande defensora da tal amizade de baixa manutenção. Mas agora me pego refletindo se isso se refere apenas às amizades ou se nós nos tornamos pessoas de baixa manutenção emocional, em que está tudo bem não sabermos como de fato os nossos amigos estão, porque não teremos tempo de auxiliá-los caso nos digam a verdade. Se está tudo bem não sabermos se nós mesmos estamos bem com tudo isso, porque não vai dar tempo de ter aquela choradinha no meio do expediente.
Vi uma aula esses dias sobre conexão emocional e fiquei imaginando… Se fizéssemos uma tomografia dos nossos cérebros hoje, será que veríamos nosso hipocampo atrofiando?
Caso você não saiba o que é o hipocampo, essa é uma ótima desculpa para você trabalhá-lo: pesquise, crie novas memórias de aprendizado. Porque ele é a estrutura cerebral responsável por isso, por guardar essas informações (mas vou deixar uma vídeoaula no final do texto para te ajudar!).
Acredito que sim, que se hoje fizéssemos uma tomografia, ela nos mostraria que estamos perdendo a nossa capacidade de sustentar conversas profundas. De manter uma escuta ativa. De criar vínculos que resistam às notificações. E isso me assuta.
E se você já está achando esse texto muito longo, talvez deva se assustar também. Porque talvez, só talvez, isso não seja uma culpa individual nossa. Mas sim do nosso contexto como sociedade em um cenário completamente capitalista, onde cada segundo do nosso tempo se torna uma oportunidade de fazer dinheiro, de vender um produto.
Na publicidade falamos muito sobre relações humanas e como as marcas devem se conectar à elas para conseguirem vender. Muitos criadores de conteúdo vendem esse discurso. A pergunta “como vender quando ninguém mais presta atenção em nada” é frequentemente utilizada para iniciar um vídeo vendendo uma masterclass. E isso mostra como até nossa ausência humana virou algo à venda.
Estamos tão ocupados em mostrar o que vivemos, tão empenhados em buscar curtidas, provar relevância, construir uma estética, que esquecemos que não é um aesthetic que define quem somos, mas sim as conversas que temos.
“Diga-me com quem andas que te direi quem és”. Outro ditado popular brasileiro que se perde nos tempos atuais, quando as pessoas andam apenas com os algoritmos – e com o chat GPT, que já está fazendo nosso papel de melhor amigo ouvindo nossas reclamações e propondo soluções.
Mas, antes de finalizar tudo isso, quero citar um último exemplo: o Substack. Desde que comecei a escrever por aqui, este foi o mês que eu mais busquei me conectar com outras escritoras da plataforma, entender o que pensam, como pensam, do que gostam. Porque se eu estou publicando minhas reflexões, é porque quero que chegue até outra pessoa e quero que meus pensamentos e aprendizados possam auxiliar aquelas que estiverem se identificando comigo. Por isso, sempre finalizo meus textos com uma mensagem positiva, pra gente lembrar que tem luz no fim do túnel.
No entanto, percebi que tem muitas pessoas dentro e fora dessa plataforma, chorando por uma escuta quando eles mesmos não ouvem. E, por isso, entendi que estamos criando cada vez mais monólogos ao invés de diálogos. Cobrando do outro que ele nos leia, nos ouça, nos curta, nos enxergue, enquanto nós só vemos a nós mesmos, em uma jornada de egocentrismo e egoísmo.
Porque, no fim, não dá pra cobrar escuta se a gente também não ouve. Não dá pra cobrar comentário quando a gente não dialoga. Não dá pra cobrar curtida quando a gente não fala pra ninguém além de nós mesmos.
E não dá pra cobrar amizade quando a gente não oferece o tal ombro amigo. Afinal, na infância as amizades são criadas pela afinidade. Na adolescência, passávamos horas discutindo teorias da vida através de avatares coloridos e pixelados. Hoje, muitas amizades se baseiam pelos interesses da vida adulta (quem tem mais chance de me conseguir um emprego? Um contato legal? Quem tem mais seguidores e que pode trazer um pouco dessa base pra mim através de um story compartilhado?)
Quando passamos nossos dias rolando vídeos de 15 segundos e pensando apenas na vida digital, não adianta reclamarmos que estamos sozinhos no mundo. Nem mesmo culpar o tempo, o trabalho, a vida adulta. Se você tem um amigo querendo crescer em alguma rede social, apoie o trabalho dele, escute o que ele precisa, sugira algumas ideias. Entenda como ele pensa. Mas faça isso por amizade, não pelo interesse de ele fazer de volta.
A ciência diz que a partir dos 25 a gente reduz nosso círculo de amizades — e acredito fielmente que isso seja verdade. Mas me pergunto se essa idade não está vindo cada vez mais cedo. Porque se antes os jovens trocavam confidências nos corredores da escola, hoje eles dançam olhando para uma câmera — o olho no olho está cada vez mais raro.
Mas talvez ainda dê tempo.
De rebobinar a fita, soprar o pó que se instalou ali dentro.
De ver o mundo com aqueles olhos de criança que está vendo tudo pela primeira vez. Porque parece que a gente não olha para o céu há um bom tempo.
Talvez ainda dê tempo.
De conversar com pausas.
De olhar nos olhos.
De chorar junto.
Ainda dá tempo.
De lembrar que vínculo se constrói no detalhe.
Mas, pra isso, a gente vai precisar sair do automático, silenciar o feed, e reaprender a perguntar — não por educação, mas por vontade real de escutar o que o outro tem a dizer.
✨ Se você achou esse texto longo, bora trabalhar o cérebro✨
1. Para seguir refletindo…
sobre uma sociedade acelerada
2. Sobre fazer amizades no offline
Uma leitura em inglês para treinar o seu cérebro :)
3. Entendendo o hipocampo
4. Amor Líquido na Amazon
Pra você refletir através da base!
Até a próxima edição!
💋
Rafaela.
mds muito obrigada pela menção! 🤍🫂
eu tou no processo de sair mais das redes sociais, ver vídeo e ouvir áudios no 2x, e percebi já o resultado que quando você citou "você deve tá achando o texto longo" eu não tinha nem notado. Seu texto tá maravilhoso e eu amei dms ler isso. Por favor escreva mais coisas assim